ࡱ > ] _ \ 3 +r jbjb^^ h< h< c 3 l ^ D $ , ^ n ^ @ ^ ^ {k $ O Fim das Descobertas Imperiais -As Descobertas dos Lugares Boaventura de Sousa Santos* Frum Social Mundial Biblioteca das Alternativas Apesar de ser verdade que no h descoberta sem descobridores e descobertos, o que h de mais intrigante na descoberta que em abstracto no possvel saber quem quem. Ou seja, o acto da descoberta necessariamente recproco: quem descobre tambm descoberto, e vice-versa. Porque ento to fcil, em concreto, saber quem descobridor e quem descoberto? Porque sendo a descoberta uma relao de poder e de saber, descobridor quem tem mais poder e mais saber e, com isso, a capacidade para declarar o outro como descoberto. a desigualdade de poder e de saber que transforma a reciprocidade da descoberta na apropriao do descoberto. Toda a descoberta tem, assim, algo de imperial, uma aco de controlo e de submisso. Este milnio, mais do que qualquer dos que o precedeu, foi o milnio das descoberta imperiais. Foram muitos os descobridores, mas o mais importante foi, sem dvida, o Ocidente, nas suas mltiplas incarnaes. O Outro do Ocidente, o descoberto, assumiu trs formas principais: o Oriente, o selvagem e a natureza. Antes de nos referirmos a cada uma das descobertas imperiais e s suas vicissitudes at ao presente, importante ter em mente as caractersticas principais da descoberta imperial. A descoberta imperial constituda por duas dimenses: uma, emprica, o acto de descobrir, e outra, conceptual, a ideia do que se descobre. Ao contrrio do que pode parecer, a dimenso conceptual precede a emprica: a ideia que se tem do que se descobre comanda o acto da descoberta e o que se lhe segue. O que h de especfico na dimenso conceptual da descoberta imperial a ideia da inferioridade do outro. A descoberta no se limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a. O que descoberto est longe, abaixo e nas margens, e essa "localizao" a chave para justificar as relaes entre o descobridor e o descoberto aps a descoberta. A produo da inferioridade , assim, crucial para sustentar a descoberta imperial. Para isso, necessrio recorrer a mltiplas estratgias de inferiorizao. Neste domnio pode dizer-se que no tem faltado imaginao ao Ocidente. Entre tais estratgias podemos mencionar a guerra, a escravatura, o genocdio, o racismo, a desqualificao, a transformao do outro em objecto ou recurso natural e uma vasta sucesso de mecanismos de imposio econmica (tributao, colonialismo, neocolonialismo, e, por ltimo, globalizao neoliberal), de imposio poltica (cruzadas, imprio, estado colonial, ditadura e, por ltimo, democracia) e de imposio cultural (epistemicdio, missionao, assimilacionismo e, por ltimo, indstrias culturais e cultura de massas). O Oriente Do ponto de vista do Ocidente, o Oriente a descoberta primordial do segundo milnio. O Ocidente no existe fora do contraste com o no-Ocidente. O Oriente o primeiro espelho da diferena neste milnio. o lugar cuja descoberta descobre o lugar do Ocidente: o centro da histria que comea a ser entendida como universal. uma descoberta imperial que em tempos diferentes assume contedos diferentes. O Oriente , antes de mais, a civilizao alternativa ao Ocidente tal como o sol nasce a Oriente, tambm a nasceram as civilizaes e os imprios. Esse mito das origens tem tantas leituras quantas as que o Ocidente tem de si prprio, ainda que estas, por seu lado, tambm no existam seno em termos da comparao com o que no Ocidental. Um Ocidente decadente v no Oriente a Idade do Ouro; um Ocidente exaltante v no Oriente a infncia do progresso civilizacional. As duas leituras esto vigentes no milnio mas, medida que este avana, a segunda leitura toma a primazia sobre a primeira e assume a sua formulao mais extrema em Hegel para quem "a histria universal vai de Oriente para Ocidente". A sia o princpio, enquanto a Europa o fim absoluto da histria universal, o lugar da consumao da trajectria civilizacional da humanidade. A ideia bblica e medieval da sucesso dos imprios (translatio imperii) transforma-se em Hegel no caminho triunfante da Ideia Universal dos povos asiticos para a Grcia, desta para Roma e finalmente de Roma para a Alemanha. A Amrica do Norte o futuro equvoco que no colide com o culminar da histria universal na Europa, na medida em que feito com a populao excedentria da Europa. Assim, este eixo Oriente-Ocidente contm, simultaneamente, uma sucesso e uma rivalidade civilizacional e, por isso, muito mais conflitual do que o eixo Norte-Sul. Este ltimo constitudo pela relao entre a civilizao e o seu oposto, a natureza e o selvagem. Aqui no h verdadeiramente conflito porque a civilizao tem uma primazia natural sobre tudo o que no civilizado. Segundo Hegel, a frica no faz parte sequer da histria universal. Para o Ocidente, o Oriente sempre uma ameaa, enquanto o Sul apenas um recurso. A superioridade do Ocidente reside em ele ser simultaneamente o Ocidente e o Norte. As mudanas, ao longo do milnio, na construo simblica do Oriente tm alguma correspondncia nas transformaes da economia mundial. At ao sculo XV, podemos dizer que a Europa e, portanto, o Ocidente, a periferia de um sistema-mundo cujo centro est localizado na sia Central e na ndia. S a partir de meados do milnio, com os descobrimentos, que esse sistema-mundo substitudo por outro, capitalista e planetrio, cujo centro a Europa. Logo no incio do milnio as cruzadas so a primeira grande confirmao do Oriente como ameaa. A conquista de Jerusalm pelos Turcos e a crescente vulnerabilidade dos cristos de Constantinopla ao avano do Islo foram os motivos da guerra santa. Insuflada pelo Papa Urbano II, uma onda de zelo religioso avassalou a Europa reivindicando para os cristos o direito inalienvel terra prometida. As peregrinaes terra santa e ao santo seplcro. que nessa altura mobilizavam multides trinta anos antes da primeira cruzada, alguns bispos organizaram uma peregrinao de sete mil pessoas, uma jornada laboriosa do Reno ao Jordo foram o preldio da guerra contra o infiel. Uma guerra santa que recrutou os seus soldados com a concesso papal, a todos os que se alistassem sob a bandeira da cruz, de uma indulgncia plena (absolvio de todos os pecados e quitao das penitncias devidas) e tambm com a miragem dos parasos orientais, os seus tesouros e minas de ouro e diamantes, palcios de mrmore e quartzo e rios de leite e mel. Como qualquer outra guerra santa, tambm esta soube multiplicar os inimigos da f para exercitar o seu vigor e, por isso, muito antes de Jerusalm, em plena Alemanha, a cruzada satisfez pela primeira vez a sua sede de sangue e de pilhagem contra os judeus. As sucessivas cruzadas e as suas vicissitudes selaram a concepo do Oriente que dominou durante todo o milnio: o Oriente como civilizao temvel e temida e como recurso a ser explorado pela guerra e pelo comrcio. Foi essa concepo que presidiu s descobertas planeadas na Escola de Sagres. Mas os portugueses no deixaram de retocar essa concepo. Talvez devido sua posio perifrica no Ocidente, viram o Oriente com menos rigidez: a civilizao temida mas tambm a civilizao admirada. O exerccio da rejeio violenta foi de par com a admirao veneranda, e os interesses do comrcio acabaram por ditar o predomnio de uma ou outra. Alis, a descoberta do caminho martimo para a ndia a mais "ocidental" de todas as descobertas, uma vez que as costas da frica Oriental e o Oceano ndico estavam h muito descobertas pelas frotas rabes e indianas. A concepo do Oriente que predominou no milnio ocidental teve a sua consagrao cientfica no sculo XIX com o chamado Orientalismo. Orientalismo a concepo do Oriente que domina nas cincias e as humanidades europeias a partir do final do sculo XVIII. Segundo Said, essa concepo assenta nos seguintes dogmas: uma distino total entre "ns", os ocidentais, e "eles", os orientais; o Ocidente racional, desenvolvido, humano, superior, enquanto o Oriente aberrante, subdesenvolvido e inferior; o Ocidente dinmico, diverso, capaz de auto-transformao e de auto-definio, enquanto o Oriente esttico, eterno, uniforme, incapaz de se auto-representar; o Oriente temvel (seja ele o perigo amarelo, as hordas mongis ou os fundamentalistas islmicos) e tem de ser controlado pelo Ocidente (por meio da guerra, ocupao, pacificao, investigao cientfica, ajuda ao desenvolvimento, etc.). O outro lado do orientalismo foi a ideia da superioridade intrnseca do Ocidente, a conjuno nesta zona do mundo de uma srie de caractersticas peculiares que tornaram possvel, aqui e s aqui, um desenvolvimento cientfico, cultural, econmico e poltico sem precedentes. Max Weber foi um dos grandes teorizadores do predomnio inevitvel do Ocidente. O facto de Joseph Needham e outros terem demonstrado que, at ao sculo XV, a civilizao chinesa no era em nada inferior civilizao ocidental, no abalou at hoje o senso comum ocidental sobre a superioridade, por assim dizer, gentica do Ocidente. Chegamos ao final do milnio prisioneiros da mesma concepo do Oriente. Alis, deve salientar-se que as concepes que assentam em contrastes dicotmicos tm sempre uma forte componente especular: cada um dos termos da distino v-se ao espelho do outro. Se verdade que as cruzadas selaram a concepo do Oriente que prevaleceu at hoje no Ocidente, no menos verdade que, para o mundo muulmano, as cruzadas agora designadas como guerras e invases francas compuseram a imagem do Ocidente um mundo brbaro, arrogante, intolerante, pouco honrado nos compromissos que igualmente at hoje dominou. As referncias empricas da concepo do Oriente por parte do Ocidente mudaram ao longo do milnio, mas a estrutura que lhes d sentido manteve-se intacta. Numa economia globalizada, o Oriente, enquanto recurso, foi profundamente reelaborado. hoje, sobretudo, um imenso mercado a explorar, e a China o corpo material e simblico desse Oriente. Por mais algum tempo, o Oriente ser ainda um recurso petrolfero, e a Guerra do Golfo a expresso do valor que ele detm na estratgia do Ocidente hegemnico. Mas, acima de tudo, o Oriente continua a ser uma civilizao temvel e temida. Sob duas formas principais, uma, de matriz poltica o chamado "despotismo oriental" e outra, de matriz religiosa o chamado "fundamentalismo islmico" , o Oriente continua a ser o Outro civilizacional do Ocidente, uma ameaa permanente contra a qual se exige uma vigilncia incansvel. O Oriente continua a ser um lugar perigoso cuja perigosidade cresce com a sua geometria. A mo que traa as linhas do perigo a mo do medo e, por isso, o tamanho da fortaleza que o exorcisa varia com a percepo da vulnerabilidade. Quanto maior for a percepo da vulnerabilidade do Ocidente, maior o tamanho do Oriente. Da que os defensores da alta vulnerabilidade no se contentem com uma concepo restrita de Oriente, tipo "fundamentalismo islmico", e apontem para uma concepo muito mais ampla, a "aliana confucionista-islmica" de que fala Samuel Huntington. Trata-se, afinal, da luta do Ocidente contra o Resto do Mundo. Ao contrrio do que pode parecer, a percepo da alta vulnerabilidade, longe de ser uma manifestao de fraqueza, uma manifestao de fora e traduz-se na potenciao da agressividade. S quem forte pode justificar com a vulnerabilidade o exerccio da fora. Um Ocidente sitiado, altamente vulnervel, no se limita a ampliar o tamanho do Oriente, restringe o seu prprio tamanho. Esta restrio tem um efeito perverso: a criao de Orientes dentro do Ocidente. este o significado da Guerra do Kosovo: O Ocidente eslavo transformado numa forma de despotismo oriental. por isso que os Kosovares, para estarem do lado "certo" da histria, no podem ser islmicos. Tm de ser apenas minorias tnicas. O Selvagem Se o Oriente para o Ocidente o lugar da alteridade, o selvagem o lugar da inferioridade. O selvagem a diferena incapaz de se constituir em alteridade. No o outro porque no sequer plenamente humano. A sua diferena a medida da sua inferioridade. Por isso, longe de constituir uma ameaa civilizacional, to s a ameaa do irracional. O seu valor o valor da sua utilidade. S merece a pena confront-lo na medida em que ele um recurso ou a via de acesso a um recurso. A incondicionalidade dos fins a acumulao dos metais preciosos, a expanso da f justificam o total pragmatismo dos meios: escravatura, genocdio, apropriao, converso, assimilao. Os jesutas, despachados quase ao mesmo tempo, ao servio de D. Joo III, para o Japo e para o Brasil, foram os primeiros a testemunhar a diferena entre o Oriente e o selvagem: "Entre o Brasil e esse vasto Oriente, a disparidade era imensa. L, povos de requintada civilizao ... Aqui florestas virgens e selvagens nus. Para o aproveitamento da terra pouco se poderia contar com sua rarefeita populao indgena cuja cultura no ultrapassava a idade da pedra. Era necessrio povo-la, estabelecer na terra inculta a verdadeira "colonizao". No assim no Oriente, superpovoado, onde a ndia, o Japo e, sobretudo, a China haviam deslumbrado, em plena idade mdia, os olhos e a imaginao de Marco Polo. A ideia do selvagem passou por vrias metamorfoses ao longo do milnio. O seu antecedente conceptual est na teoria da "escravatura natural" de Aristteles. Segundo esta teoria, a natureza criou duas partes, uma superior, destinada a mandar, e outra, inferior, destinada a obedecer. Assim, natural que o homem livre mande no escravo, o marido, na mulher, o pai, no filho. Em qualquer destes casos quem obedecer est total ou parcialmente privado da razo e da vontade e, por isso, do seu interesse ser tutelado por quem tem uma e outra em pleno. No caso do selvagem, esta dualidade atinge uma expresso extrema na medida em que o selvagem no sequer plenamente humano; meio animal, meio homem, monstro, demnio, etc. Esta matriz conceptual variou ao longo do milnio e, tal como sucedeu com o Oriente, foi a economia poltica e simblica da definio do "Ns" que determinou a definio do "Eles". Se verdade que dominaram as vises negativas do selvagem, no menos verdade que as concepes pessimistas do "Ns", de Montaigne a Rousseau, de Las Casas a Vieira estiveram na base das vises positivas do selvagem, o "bom selvagem". Neste segundo milnio a Amrica e a frica, enquanto "descobertas" ocidentais, so o lugar por excelncia do selvagem. E a Amrica talvez mais que a frica, dado o modelo de conquista e colonizao que prevaleceu no "Novo Mundo", como significativamente foi designado por Amrico Vespcio o continente que rompia com a geografia do mundo antigo, confinado Europa, sia e frica. a propsito da Amrica e dos povos indgenas submetidos ao jugo europeu que se suscita o debate fundador sobre a concepo do selvagem no segundo milnio. Este debate que, contrariamente s aparncias, est hoje to em aberto como h quatrocentos anos, inicia-se com as descobertas de Cristvo Colombo e Pedro lvares Cabral e atinge o seu primeiro clmax na "Disputa de Valladolid", convocada em 1550 por Carlos V, em que se confrontaram dois discursos paradigmticos sobre os povos indgenas e a sua dominao, protagonizados por Juan Gins de Seplveda e Bartolom de Las Casas. Para Seplveda, fundado em Aristteles, justa a guerra contra os ndios porque estes so os "escravos naturais", seres inferiores, animalescos, homnculos, pecadores graves e inveterados, que devem ser integrados na comunidade crist, pela fora, se for caso disso, a qual, se necessrio, pode levar sua eliminao. Ditado por uma moral superior, o amor do prximo pode, assim, sem qualquer contradio, justificar a destruio dos povos indgenas: na medida em que resistem dominao "natural e justa" dos seres superiores, os ndios tornam-se culpados da sua prpria destruio. para seu prprio benefcio que so integrados ou destrudos. A este paradigma da descoberta imperial, fundado na violncia civilizadora do Ocidente, contraps Las Casas a sua luta pela libertao e emancipao dos povos indgenas, que considerava seres racionais e livres, dotados de cultura e instituies prprias, com os quais a nica relao legtima era a do dilogo construtivo assente em razes persuasivas "suavemente atractivas e exortativas da vontade". Fustigando a hipocrisia dos conquistadores, como mais tarde far o Padre Antnio Vieira, Las Casas denuncia a declarao da inferioridade dos ndios como um artifcio para compatibilizar a mais brutal explorao com o imaculado cumprimento dos ditames da f e dos bons costumes. Pese embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de Seplveda que prevaleceu, porque s esse era compatvel com as necessidades do novo sistema mundial capitalista centrado na Europa. No terreno concreto da missionao, dominaram quase sempre as ambiguidades e os compromissos entre os dois paradigmas. O Padre Jos Anchieta talvez um dos primeiros exemplos. Tendo, embora, repugnncia pela antropofagia e pela concupiscncia dos brasis, "gente bestial e carniceira", o Padre Anchieta acha legtimo sujeitar os gentios ao jugo de Cristo que "assim [...] sero obrigados a fazer, por fora, aquilo a que no possvel lev-los por amor", ao mesmo tempo que de Roma os seus superiores lhe recomendam que evite atritos com os portugueses, "pelo que importa mant-los benvolos". Mas, por outro lado, tal como Las Casas, Anchieta embrenha-se no conhecimento dos costumes e das lnguas indgenas e v nos ataques dos ndios aos portugueses o castigo divino "pelas muitas sem-razes que tm feito a esta nao, que dantes eram nossos amigos, salteando-os, cativando-os, e matando-os, muitas vezes com muitas mentiras e enganos". Quase vinte anos depois, haveria Anchieta de se lamentar que "a maior parte dos ndios, naturais do Brasil, est consumida, e alguns poucos, que se ho conservado com a diligncia e trabalhos da Companhia, so to oprimidos que em pouco tempo se gastaro". Com matizes vrios, o paradigma de Seplveda que ainda hoje prevalece na posio ocidental sobre os povos amerndios e os povos africanos. Expulsa das declaraes universais e dos discursos oficiais , contudo, a posio que domina as conversas privadas dos agentes do Ocidente no Terceiro Mundo, sejam eles embaixadores, funcionrios da ONU, do Banco Mundial ou do Fundo Monetrio Internacional, cooperantes, empresrios, etc. esse discurso privado sobre pretos e ndios que mobiliza subterraneamente os projectos de desenvolvimento depois enfeitados publicamente com declaraes de solidariedade e direitos humanos. A Natureza A natureza a terceira grande descoberta do milnio, alis, concomitante da descoberta do selvagem amerndio. Se o selvagem , por excelncia, o lugar da inferioridade, a natureza , por excelncia, o lugar da exterioridade. Mas como o que exterior no pertence e o que no pertence no reconhecido como igual, o lugar de exterioridade tambm um lugar de inferioridade. Tal como o selvagem, a natureza simultaneamente uma ameaa e um recurso. uma ameaa to irracional quanto a do selvagem, mas a irracionalidade deriva, no caso da natureza, da falta de conhecimento sobre ela, um conhecimento que permita domin-la e us-la plenamente como recurso. A violncia civilizatria que, no caso dos selvagens, se exerce por via da destruio dos conhecimentos nativos tradicionais e pela inculcao do conhecimento e f "verdadeiros" exerce-se, no caso da natureza, pela produo de um conhecimento que permita transform-la em recurso natural. Em ambos os casos, porm, as estratgias de conhecimento so basicamente estratgias de poder e dominao. O selvagem e natureza so, de facto, as duas faces do mesmo desgnio: domesticar a "natureza selvagem", convertendo-a num recurso natural. essa vontade nica de domesticar que torna a distino entre recursos naturais e recursos humanos to ambgua e frgil no sculo XVI como hoje. Tal como a construo do selvagem, tambm a construo da natureza obedeceu s exigncias da constituio do novo sistema econmico mundial centrado na Europa. No caso da natureza, essa construo foi sustentada por uma portentosa revoluo cientfica que trouxe no seu bojo a cincia tal como hoje a conhecemos, a cincia moderna. De Galileu a Newton, de Descartes a Bacon, um novo paradigma cientfico emerge que separa a natureza da cultura e da sociedade e submete a primeira a um guio determinstico de leis de base matemtica. O Deus que justifica a submisso dos ndios tem, no caso da natureza, o seu equivalente funcional nas leis que fazem coincidir previses com acontecimentos e transformam essa coincidncia na prova da submisso da natureza. To estpida e imprevisvel enquanto interlocutor quanto o selvagem, a natureza no pode ser compreendida; pode apenas ser explicada, e explic-la a tarefa da cincia moderna. Para ser convincente e eficaz, esta descoberta da natureza no pode questionar a natureza da descoberta. Com o tempo, o que no pode ser questionado deixa de ser uma questo, isto , torna-se evidente. Este paradigma de construo da natureza, apesar de apresentar alguns sinais de crise, ainda hoje o paradigma dominante. Duas das suas consequncias assumem uma especial preeminncia no final do milnio: a crise ecolgica e a questo da biodiversidade. Transformada em recurso, a natureza no tem outra lgica seno a de ser explorada at exausto. Separada a natureza do homem e da sociedade, no possvel pensar retroaces mtuas. Esta ocultao no permite formular equilbrios nem limites, e por isso que a ecologia no se afirma seno por via da crise ecolgica. Por outro lado, a questo da biodiversidade vem repor num novo plano a sobreposio matricial entre a descoberta do selvagem e a descoberta da natureza. No por acaso que no final do milnio boa parte da biodiversidade do planeta existe em territrios dos povos indgenas. Para eles, a natureza nunca foi um recurso natural, foi sempre parte da sua prpria natureza enquanto povos indgenas e assim a preservaram preservando-se, sempre que conseguiram escapar destruio ocidental. Hoje, semelhana do que ocorreu nos alvores do sistema mundial capitalista, as empresas multinacionais da farmacutica, da biotecnologia e da engenharia gentica procuram transformar os indgenas em recursos, agora no em recursos de trabalho, mas antes em recursos genticos, em instrumentos de acesso, no ao ouro e prata, mas, por via do conhecimento tradicional, flora e fauna, sobre a forma de biodiversidade. Os Lugares fora do Lugar Identifiquei as trs grandes descobertas matriciais do milnio: o Oriente enquanto lugar da alteridade; o selvagem, enquanto lugar da inferioridade; a natureza, enquanto lugar de exterioridade. So descobertas matriciais porque acompanharam todo o milnio, ou boa parte dele, e tanto que, no final do milnio, e apesar de alguns questionamentos, permanecem intactas na sua capacidade para alimentar o modo como o Ocidente se v a si prprio e tudo o que no identifica consigo. A descoberta imperial no reconhece igualdade, direitos ou dignidade ao que descobre. O Oriente inimigo, o selvagem inferior, a natureza um recurso merc dos humanos. Como relao de poder, a descoberta imperial uma relao desigual e conflitual. tambm uma relao dinmica. Por quanto tempo o lugar descoberto mantm o estatuto de descoberto? Por quanto tempo o lugar descoberto permanece no lugar da descoberta? Qual o impacto do descoberto no descobridor? Pode o descoberto descobrir o descobridor? Pode o descobridor descobrir-se? So possveis redescobertas? O final do milnio um tempo propcio s interrogaes. Na orla do tempo, a perplexidade parece ser a forma menos insana de conviver com a dramatizao das opes ou da falta delas. O sentimento de urgncia o resultado da acumulao de mltiplas questes na mesma hora ou lugar. Sob o peso da urgncia, as horas perdem minutos e os lugares comprimem-se. sob o efeito desta urgncia e da desordem que ela provoca que os lugares descobertos pelo milnio ocidental do sinais de inconformismo. Na intimidade, esse inconformismo coincide em tudo com o auto-questionamento e a auto-reflexividade do Ocidente. possvel substituir o Oriente pela convivncia multicultural? possvel substituir o selvagem pela igualdade na diferena e pela auto-determinao? possvel substituir a natureza por uma humanidade que a inclua? Estas so as perguntas a que o terceiro milnio tentar responder. *Socilogo. Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Leitura recomendada Anchieta, Jose. Obras Completas. So Paulo: Edies Loyola. Gibbon, Edward. 1928. The Decline and Fall of the Roman Empire. 6 Volumes. Londres: J.M. Dent. Las Casas, Bartolom. 1992. Obras Completas. Tomo X, Madrid: Alianza Editorial. Montaigne, Michel de. 1998. Ensaios. Lisboa: Relgio D'gua. Needham, Joseph. 1954. Science and Civilization in China. 6 Volumes. Cambridge: Cambridge University Press. Said, Edward. 1979. Orientalism. Nova Iorque: Vintage Books. Vitorino Magalhes Godinho, apesar de criticar os que questionam o conceito de descobrimento no contexto da expanso europeia, reconhece que descoberta em sentido pleno s existiu no caso da descoberta das ilhas desertas (Madeira, Aores, Ilhas de Cabo Verde, So Tom e Prncipe, Ascenso, Santa Helena, ilhas de Tristo da Cunha). Vitorino M. Godinho, "Que significa descobrir?" in Adauto Novaes (org.) A Descoberta do Homem e do Mundo, So Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 55-82. Cfr. Edward Gibbon, The Decline and Fall of the Roman Empire, Vol. 6. Londres: J.M. Dent and Sons, p. 31. Cfr. Edward Said, Orientalism. Nova Iorque: Vintage Books, 1979, p. 300. Cfr. Max Weber , A tica Protestante e o esprito do Capitalismo. 3 edio, Lisboa: Ed. Presena,1990. Cfr. Joseph Needham, Science and Civilization in China, 6 Volumes. Cambridge: Cambridge University Press, 1954. Cfr. Amin Maalouf, As cruzadas vistas pelos rabes. 7 edio, Lisboa: Difel, 1983. Cfr. Samuel Huntington, "The Clash of Civilizations?", Foreign Affairs, 72(1993), 3. Num dos relatos recolhidos por Ana Barradas (1992), os ndios so descritos como () verdadeiros seres inumanos, bestas da floresta incapazes de compreender a f catlica (), esqulidos selvagens, ferozes e vis, parecendo-se mais animais selvagens em tudo menos na forma humana (). Ana Barradas, Ministros da Noite Livro Negro da Expanso Portuguesa. Lisboa: Antgona, 1992. Cfr. Helio A. Viotti, S. J. Prefcio s Cartas do P. Jos de Anchieta, Obras Completas, Vol. 6. So Paulo: Edies Loyola, 2 edio, 1984, p. 12. Cfr. Juan Gins de Seplveda, Tratado sobre las Justas Causas de la Guerra contra los ndios. Mxico: Fordo de Cultura Economica, 1979. Cfr. Bartolom de Las Casas, Obras Completas, Tomo X. Madrid: Alianza Editorial, 1992. Carta de 1.10.1554, Obras Completas, Vol. 6, p. 79. Carta do Geral Everardo para o P. Jos Anchieta de 19.8.1579, Obras Completas, Vol. 6, p. 299. Carta de 8.1.1565, Obras Completas, Vol. 6, p. 210. Carta de 7.8.1583, Obras Completas, Vol. 6, p. 338. % & > P H I ]% ^% <) =) ) ) * * , , Z2 [2 f5 q5 D6 E6 : : E E NG OG J J yK zK L L M M MP XP _ ` g h !h 0h Nh fh h h h h h i !i (i Ai Bi [i }i i i i i i i i j 0J UCJ OJ QJ mH 6CJ OJ QJ mH CJ OJ QJ mH 6CJ OJ QJ j 0J CJ OJ QJ U5CJ OJ QJ CJ OJ QJ H B C D ` a w ` ]` $ `d ]`a$ `0 ]``0 $ d ]a$ ` 8! B C D ` a w L$ ' ?* , v0 3 f5 q5 8 : `? E iH #I M MP XP U Z [\ _ ` a ,d e g h Nh h i Bi i i i i i i i k Ol l m ym m (n o =p p "q Yq q q )r +r L L$ ' ?* , v0 3 f5 q5 8 : `? E iH #I M MP XP U Z [\ _ ` a ,d e ` ]` $ `d ]`a$ `0 ]``0 e g h Nh h i Bi i i i i i i i k Ol l m ym m (n o =p p "q $dh a$ `]` `1 ]``1 ` ]` `0 ]``0 i k k k k k k !l Nl Ol Pl Ql el pl rl l l l l l l l m m m m ?m xm ym zm m m m m m n n 'n (n )n o o o o p