O Caso

Arthur Prado Netto

Publicado el: 2003-08-11

    



é apenas após o reconhecimento do historiador pelo que a psicanálise tem de potencial para explicar o comportamento grupal e a interação...

 

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O Caso


é apenas após o reconhecimento do historiador pelo que a psicanálise tem de potencial para explicar o comportamento grupal e a interação contínua entre mundo e mente, que ele pode sentir-se pronto para incorporá-la aos seus métodos de investigação e integrá-la a sua visão do passado."
(Peter Gay)


Por Arthur Prado Netto

A Psicanálise vem, ao longo do século, demonstrando ser um instrumento indispensável para a investigação do passado humano. No entanto, ao se pensar sobre o movimento historiográfico dessas últimas décadas, o que se verifica é uma rejeição, por parte dos historiadores, por vezes até mesmo beirando a histeria, é uma rejeição do método psicanalítico, sejam estes porta-vozes do "positivismo", do "marxismo" ou de outras linhas teóricas do pensamento histórico. Seu argumento, muitas vezes, era de que não se poderia aplicar um método que é essencialmente individual (a psicanálise clínica) na análise de fenômenos que são originariamente coletivos, além do fato, "evidente", de não se poder analisar "os mortos" porquanto a história se reporta sempre ao passado, seja ele remoto ou imediato.

No entanto, refletir pensar apenas sobre na importância da análise individual é deixar de lado grande parte da existência humana. Como integrar esse ponto de vista, por exemplo, quando se observa pensa que, na formação da civilização, criou-se o recalque que, secularmente, avança na vida emocional da sociedade? Na pré-história, as relações se configuravam por atos animalescos. As Hordas primitivas ? que não tinham noção de consangüinidade e de parentesco, vez que existiam apenas machos e fêmeas em busca da sobrevivência ? não se conduziam por leis que regessem suas "pulsões" (instintos). Com o início do sedentarismo, o homem se vê diante da propriedade privada e da importância da preservação de seus bens para seus descendentes. E é nesse período que se institui a monogamia enquanto regra social, e os homens passam a "abrir mão" das "pulsões" para constituir a humanidade. Nesse momento, estabelece-se a Lei de Interdição, possibilitando o surgimento da vida em sociedade. O sujeito dessa fase passa a ser regido pelo "recalque" que progrediria sucessivamente no decorrer da civilização. Por outro lado, a religião, nessa conjuntura, é algo que se estabelece a fim de sustentar as desigualdades sociais, em conseqüência do advento da propriedade privada. A crença na "Força Superior" integraria o indivíduo na sociedade, estabelecendo sua posição em relação aos seus superiores. Mas essa sociabilidade não se verificou plenamente. Como afirma Peter Gay:


"Para Freud, o homem é um animal social sem ser um animal inteiramente socializado, a sua natureza social é em si mesma a fonte de conflitos e antagonismos que criam resistências à socialização através de normas de qualquer sociedade que possa ter existido no curso da história humana."



Sem querer entrar na discussão, longa e complexa, da validade do método psicanalítico para a investigação histórica, visto que isso ultrapassaria por demais os limites desste pequeno ensaio, apenas se pretende lançar, para o universo dos historiadores brasileiros, a discussão, tão pouco explorada, dsobre as possibilidades de utilização do método psicanalítico no ofício do historiador, ou, pelo menos, para aqueles que admitem o papel desempenhado pela mente na formação das ideologias, da política e da estrutura social. Evidentemente, esse campo ? que teria que traçar trilhas diferentes do da análise clínica ? ainda se encontra carente de uma teorização mais completa e de exemplos que olhe validem enquanto método. Desse modo, o que está em questão é nada menos que a projeção da psicanálise nas experiências humanas e, através delas, a sua relevância para o trabalho do historiador.

A reflexão histórica, em especial sobre alguns acontecimentos passados, leva-nos a crer que o processo histórico não é apenas "comandado" por forças estruturais ou conjunturais ? sejam elas econômicas, políticas, culturais ou mesmo a síntese de todas estas ? e nem mesmo por ações apenas conscientes. Assim como o curso individual de cada ser humano é, muitas vezes, guiado por ações inconscientes, também o é o curso da história. E como se investigar esses acontecimentos sem se adentrar no terreno da análise do inconsciente e, dessa forma, no terreno da psicanálise (ou de outro método que se reivindique para ddo estudo do inconsciente)? Não seria tal atitude semelhante àaa dos historiadores positivistas do século XIX que não cogitavam a idéia de investigar um universo que não fosse o do político e do factual?

Um dos acontecimentos, por exemplo, que nos faz pensar na ação do inconsciente no curso da história é o da "Noite de São Bartolomeu" e de toda a conjuntura que lhe é contemporânea. E o que pôde suscitar essa reflexão foi a análise de um filme que, não obstante esteja nos limites do ficcional e do não-ficcional, possui um forte sentido histórico. Tomemos como exemplo, agora, o filme A Rainha Margot, vislumbrando mesclas do contexto histórico e psicanalítico dos fatos evidentes nos primórdios da Idade Moderna, quando a Europa convivia com a ascensão da burguesia e com a consolidação do absolutismo. Baseado no livro de ficção La Reine Margot, de Alexandre Dumas, publicado em 1845, o filme traz uma versão realista da história, revelando a psicologia das personagens, seus atos e gozos sexuais desregrados.

Durante o século XVI, precisamente no ano de 1572, católicos e protestantes se enfrentavam em uma guerra civil intermitente. Nesse contexto, a rainha Catharina de Médici e Jeanne D?Albert, com o objetivo de consolidar a paz e estabelecer uma aliança entre os Valois (protestantes) e os Bourbons (católicos), firmam o casamento de Margerithe de Valois e Henrique de Bourbon (Rei de Navarra).

Em seu contexto político-religioso, encontramos dois partidos de interesses opostos: os "huguenotes" (liderados por protestantes e chefiados pelo Almirante Colgny, o melhor amigo do rei) e o "Papista ou Santa-Liga" (formado por católicos e chefiado pelos Guise). No período que sucede o casamento, que a princípio traria a paz para a França, ocorre o episódio que mata mais de trinta mil protestantes na madrugada da comemoração católica pelo Dia de São Bartolomeu, quando, para evitar um golpe huguenote, a rainha Catharina ordenou o assassinato de Colgny e seus seguidores, num massacre conhecido como "A Noite de São Bartolomeu", evidenciando a rivalidade política dos partidos que usavam a religião como "pano de fundo" para encobrir outros interesses.

Numa visão psicanalítica, a Família Real sofria a ausência da Lei de Interdição (ou seja da Lei do Pai). A figura materna, ora representada por Catharina, vivenciava uma relação incestuosa, uma vez que não havia a presença do Pai (aquele que controlaria as pulsões sexuais), representando uma "mãe-fálica", aquela que exerce uma postura forte no exercício do poder, acarretando a ausência do "feminino". Entretanto, ela alimentava uma forte ligação com seu filho, Anjour, que faz extrapolar o limite do édipo imaginário, exercendo o amor incestuoso e real. Há também comportamentos sexuais perversos dos sujeitos masculinos; tratando-se de uma outra estrutura (a "perversão"), na qual o desejo é tomado de modo diferente na sua dialética com o falo, ou seja, o desejo é colocado como imperativo de gozo ( um "imperativo superegóico").

O amor , no contexto real da corte, era algo que não se podia demonstrar, um meio fácil de poder atingir o outro através do sujeito apaixonado. Toda liberdade que se tinha disponível para o sexo entrava em contradição com a forma de amar, pois o amor só poderia existir no âmbito familiar. O personagem La Molle, por exemplo, sempre insinuou a beleza e a liberdade do amor em Navarra, visto que, naquele reino de poder, era perigosa a relação amorosa entre ele e Margot, sendo este sentimento comparado à morte (a forma encontrada para destruir alguém). Outro momento importante no filme que representa o que afirmamos acima é o que trata do amor de Henrique de Bourbon por Charllote, que no decorrer da história só não lhe trouxe a morte devido `à interferência de Margot que o salva do beijo envenenado e afirma: "aqui não se pode demonstrar a quem se ama; esta é a forma que eles acham para te destruir, com quem se dorme". Seria o amor sinônimo da morte?

Margot encontra-se perdida entre o seu casamento imposto e as questões graves refletidas no "feminino". Seu comportamento sexual predominante é o de se oferecer como objeto, a exemplo do ocorrido em sua noite de núpcias ? ela doa-se ao seu amante e diante da frustração obtida pelo "não", sai às ruas numa "busca de homens", assumindo um comportamento sexual, em geral, masculino: o da procura, da caça ao prazer. Ela aparece entre o "masculino" e o "feminino", conseqüência de pertencer a uma família de homens com estruturas perversas (homossexuais). Parece que é interdita redimida aoao amor, até que se apaixona por La Mole (protestante), ao qual se entrega, a princípio apenas como objeto de prazer. Entretanto, o verdadeiro amor transforma-a em "sujeito", em alguém apaixonada e capaz de enxergar os limites e as contradições de sua família, confrontando-se, então, com sua mãe e evidenciando o ódio entre ambas. O amor a retira da posição de objeto desvalorizado no qual o gozo assume a dimensão permanentemente masoquista e a torna sujeito, pois a metáfora do amor exige também a posição de sujeito desejante. Dessa forma, Margot tem vislumbres de algo do real que outrora não identificava em sua relação com os irmãos.

Apenas distante da família, Margot poderia amar. A morte de La Mole traz a dimensão do seu amor ao nada, assumindo, ao final, a forma de fetiche: a cabeça do amado é preservada, conservada, fetichizada como objeto significante do desejo. E então, ela parte para Navarra, onde lhe seria permitido amar. A incriminação de La Molle por Catharina traz o preço a ser pago por ela ter violado a "lei do amor", pois se tornara sujeito imperativo, acentuando, como já foi dito, a rivalidade e o ódio entre ambas. Tal ódio é demonstrado claramente pelos atos de Catharina que desejava, a todo custo, destruir a feminilidade de sua filha.

O Rei Carlos IX apresenta, como todos os irmãos, uma carência paterna intensificada, percebida em sua relação com Colgny e, posteriormente, com o seu cunhado Henrique de Bourbon (apresentando traços de homossexualidade). Encontrava-se diante do poder supremo, e o seu amor por Marie era algo velado, sendo apenas revelada a existência de sua amante e filho bastardo a Henrique de Navarra no instante em que se estabelece uma grande amizade entre ambos.

Para além dos efeitos individuais e familiares que esses elementos psicanalíticos desempenharam ? cuja análise é tão importante para o ofício do psicanalista ou do mesmo do biógrafo ?, cabe a nós, historiadores, perguntarmo-nos acerca dos reflexos que esses mesmos elementos exerceram no curso dos acontecimentos históricos. Quanto ao filme, e, em conseqüência, também à própria história do episódio francês, não teria, a atitude de Catharina e de seus filhos ? de ordenar o massacre dos protestantes ? alguma relação com os elementos psicanalíticos acima explicitados? Ou seria um acontecimento como este, no qual morreram mais de trinta mil "personagens", digno apenas de uma análise meramente individual da vida de Catharina?

***

Sendo estsa a segunda versão cinematográfica ? a primeira exibida em 1954, tendo Jeane Moreau no papel principal ?, A rainhaRainha Margot revela-se um bom leit-motiv para a discussão de questões relativas à documento para o início da IIdade Moderna e, em especial, daà "Noite de São Bartolomeu" (que pode ainda ser analisado através da pintura de François Dubois, artista protestante que testemunhou e retratou tais acontecimentos, com grande realismo, em sua obra La Saint Bartlhèmy, que permanece no museu da cidade de Laousanne, às margens do Lago Lémon, Suíça). é, e além disso, um bom instrumento leit-motif para se pensar a relação existente entre a Psicanálise e a História.

Arthur Prado Netto é pesquisador da Oficina Cinema-História, estudante do Instituto Brasileiro de Psicanálise (Seção Bahia) e do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia.

http://www.ufba.br/~revistao/o3margot.html




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